restos adolescentes

Janaína Steiger
4 min readAug 16, 2022

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Arrumem o quarto e não esqueçam de arrumar o armário!”. Sim, mãe, responde Bruna, em silêncio. Pega uma camiseta da pilha em cima da cama, que se confunde com o lençol; a vassoura encostada na escrivaninha, que de tanto papel espalhado, quase não se vê a cor. Tampouco se vê a cor do tempo, que da porta não passa.

-Sabe mana, dias desses eu li, ouvi, não lembro…
-O quê? — Assusta-se Bruna, com a quebra do silêncio.
-Que o caos às vezes é necessário, antes da ordem. — Eduarda escora-se na parede, olhando para o quarto. — Aqui fora, mas também, dentro.
-Acho que sim — Bruna fala, voltando o olhar na direção da última gaveta do armário, agora aberto. — E alguns pontos caóticos, bom… Também faz parte deixar, né?

A irmã segue o olhar, mas logo ambos voltam a se encontrar. Um esboço de sorriso compartilhado. Volta o silêncio.

A gaveta fora apelidada por ambas de “buraco negro” — onde tudo cabe, a que tudo abraça. Cartinhas cartões bilhetes de amor de ônibus cinema metrô. Convites de aniversário, fotos, ingressos de festas shows. Papel de carta rascunho chiclete bom-bom. Tudo cabe, tudo fica, até a ilusão de que porque guardado, não acaba. Acumuladoras de restos, elas gostavam de se denominar. “Quando vão arrumar aquela maldita gaveta?”. Acho que nunca, mãe, muito menos agora. É Eduarda quem sussura, em pensamento, enquanto observa a irmã explorar as roupas de cima da cama.

Bruna segura à sua frente uma camiseta com o logo da escola e cheira. À direita, o que vai pra lavar. À esquerda, o que volta pro armário. Direita, direto — menos uma pra dobrar. A próxima, uma calça de ginástica que faz conjunto com a primeira peça. Levanta e estica na direção de Eduarda.

-“Por que tão justa? Só vocês pra aderir à essa moda horrorosa!” — Bruna afina a voz, remetendo ao timbre da mãe.
-Só ela, pra ter um palpite depreciativo sobre tudo.
-“Quem ama, critica”, lembra?Bruna segue a imitação.

O tom é divertido, mas nem a última gaveta do armário comporta diversão naquele quarto. Outro olhar entrecruzado. Outro curvar de boca compartilhado. O mesmo silêncio. O sorriso não abre, a risada presa — e pesa.

Eduarda esvazia o conteúdo de uma bolsa em cima da escrivaninha, fazendo jus ao caos. À espera da prometida ordem. Pega a caixa de cigarro que cai e, como de costume, coloca no fundo da segunda gaveta, arrumando os cadernos à frente de forma a tapá-lo da vista. A caixa, por sua vez, é colocada virada com a foto de alerta para baixo, também hábito entre elas, que sabiam tanto dos malefícios do cigarro quanto sabia a mãe que elas fumavam. “Não façam nada que eu não faria”. A mãe sempre fumou.

Bruna interrompe a organização de roupas e junta-se à Eduarda, que realiza a curadoria dos papéis sob a mesa. À direita, o que iria ao lixo. À esquerda, o que seria abraçado pela última gaveta do armário. De volta à bolsa, o que seria levado junto ao compromisso iminente, para o qual se preparavam. Ali, as duas carteiras. “Não pode sair de casa sem documento, e se acontece alguma coisa com vocês?”. Lencinhos de papel. “A rinite não vai passar nunca se não assoarem o nariz”. A chave de casa. “Quando eu não tiver mais aqui, vocês não vão mais poder esquecer a chave toda a semana!” E duas fotos. “Hoje vocês reclamam, mas um dia ainda vão agradecer por cada foto que a gente tira”. Sem mudança de timbre, sem imitação, sem voz. Elas sabem cada palavra que colocam junto, na bolsa compartilhada.

O telefone interrompe o silêncio. É Bruna quem atende.

-Oi meus amores, estão vindo? — o silêncio fala, então prossegue — O velório inicia em 20min, algumas amigas dela já estão aqui.

O olhar volta a encontrar-se, pousa. O tempo entra. Bruna pega uma das fotos de dentro da bolsa e coloca na última gaveta do armário. Onde tudo cabe, a que tudo abraça. Dentro, fica. Fica a mãe e ficam os restos da adolescência que, elas sabem, também velam ali.

Eduarda pega dois casacos de cima da cama e levanta-se, pegando a irmã pela mão. A ordem vai ter que esperar — assim, esperam. “Se agasalhem, meus amores”.

A voz no fundo da nossa cabeça tem sempre o timbre da voz da mãe da gente.

Foto por Jakob Owens em Unsplash

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